segunda-feira, 18 de abril de 2011

parte um



Foi ele quem disse primeiro:
     - Chega uma hora que toda discussão perde o sentido... perde a razão de ser e de doer.

     Estavam sentados à pequena mesa da cozinha, à meia luz, há pouco depois de meia noite; Ela assentiu com a cabeça à constatação de que, realmente, haviam perdido a razão, haviam, na verdade, perdido um ao outro na hostilidade do amor condicional que no momento se resumia apenas em cobranças num desafeto todo banhado de egoísmo e auto-proteção.
     O ar estava frio, ambos retidos em si, em suas próprias vergonhas e medos como duas cargas elétricas de sinais opostos num ambiente de condutividade quase nula; bloqueavam a si mesmos, eis a verdade. Era desanimadora a cena, mal olhavam um para o outro, estagnados, pois. Cansados. E ainda detentores de um amor imenso; amor calado no momento, bem verdade, assim tímido, doído, exausto... Ele insistia em dizer que, se não fosse Ela, não seria mais ninguém, era bem provável mesmo; Ela imaginava que se não fosse Ele, talvez fosse outro alguém. Porém, sendo Ele, era singularmente especial. E ela sentia essa singularidade talvez por que estava mais madura que nos relacionamentos anteriores, talvez pela peculiaridade, mesmo, ali clara, assim evidente, de algo muito maior que o próprio entendimento; talvez por saber e sentir como de fato ele a havia escolhido e a forma com que ela foi ficando e se encaixando naquele encontro.. O querer e a gratuidade eram evidentes. Ela sabia e sentia e, naquela noite à mesa da cozinha, ela teria certeza.
     Os olhos permaneceram baixos, de ambos, não ousavam fitar-se. As mãos é que iam de encontro a um lugar comum, aos poucos, numa interação suave, iam-se tocando e interagindo; um dedo, depois outro, e outro, e outro ... Ela fitava aquele tímido diálogo de tato e movimentos lentos de olhos paralisados, ainda baixos e úmidos, salgados e imersos em beleza; tornavam a se encher e transbordar, ainda mais salgados, úmidos e molhados, achavam lindo o vagaroso entrelaçar das mãos. Vezenquando, as mãos, apertavam-se forte como que ali quisessem fundir, depois voltavam às carícias sutis, namoravam-se como que dotadas de vida própria. A respiração ia sufocando, pouco a pouco; o fôlego se esvaía inversamente proporcional à área de contato entre pele e outra; entre dedos, apenas, avançavam às mãos, inteiras. Avançavam membros acima, antebraço, braço, ombro, nuca, cautelosamente tateando mais afundo a alma
                            Como se o calor do toque alcançasse o coração e o esquentasse, bem como as bochechas e as coxas, narizes e pés. Ele, de pálpebras atadas, entregue àquelas mãozinhas que apaziguavam-lhe a dor, deixando-as desvendar-lhe o epitélio; tentava, por pouco, conter a excitação que aqueles gestos lhe proporcionavam, por pouco, apenas, pois logo deixava-se ser, entrega plena. Sua pulsação lhe açoitava os sentidos numa freqüência tão maior que a velocidade baixa daqueles movimentos, daquelas mãos... O mundo..... parado....... o tempo, lento, e dentro de suas carapaças orgânicas tudo acontecia. Absorveram o mundo para si mesmos através de um simples gesto mútuo, era bonito e singelo, era ser humano fazendo jus à poesia inerente das emoções orgânicas.

     As mãos dela alcançaram o rosto dele, finalmente o rosto, enquanto as dele permaneciam entorpecidas: na nuca, uma. Contra a mão dela, outra. A ponta de um dos indicadores dela desvendavam-lhe os traços, desenhava seu rosto em calor seguindo o contorno dos olhos, a curva do nariz, os lábios principalmente, num ato redundante de pura contemplação. Envolveu-lhe o rosto com as mãos inteiras; palmas das mãos comprimindo as bochechas como quem dizia Deixa eu cuidar de você; e ele de olhos fechados parecia se embriagar nalguma coisa e ela filmava tudo com o olhar e era tão sutil.... Ele beijava as mãos dela como que estivessem para desaparecer para sempre; as envolvia com as próprias comprimindo-as contra as bochechas, a boca, seus beijos; as encaixava no próprio rosto como que o fizessem completo ; ele sabia, assim, de olhos ainda atados, ele sentia: não eram exatamente as mãos em si, era de onde vinham e o que diziam. E ela, de olhos ainda entorpecidos, também soube; era carinho carinho carinho por demais que mesmo que não fosse ele e fosse um outro alugém, era ainda assim carinho carinho por demais para ser qualquer um, não era, pois, acaso completo
Era encontro, e querer, um querer imenso

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