quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Ignorance is Bliss (rascunho)

    Para quem um dia trocou cartas de amor convencional com aquele jovem José de Teresina, o vô Zé que agora dormia todas as noites ao seu lado fazia-lhe pensar que aquele ali deitado vinha de Teresina não, parecia era ter nascido noutra terra bem gelada. A realidade é que fora sempre assim, gelado, distante, abismo. O que lhe aflingia agora era como isso havia se agravado. E estar deitada ali, naquele momento como em muitos outros, não fora escolha dela, não!, a vida havia, há tempos, lhe pedido isso - e agora Sartre se revira em seu túmulo. A família a havia obrigado, era tradição, ora pois! Pelo menos ela tinha tido o conforto que lhe haviam prometido, ficar pra titia que nem a irmã? Deus que me livre.
     De qualquer forma, começaram com as cartas, ela e o José. Era intrínseco, na família, que durante os preparativos para os casamentos as moças trocassem cartas com os rapazes para que familiarizassem um tanto, um mínimo. Correspondências minuciosamente analisadas pelos patriarcas, é claro. Nas primeiras cartas que trocaram, os dizeres dele, do Zé, vinham cheios de promessas, formalidades e expectativas - e o coração dela batia sem nem saber por que. Sou assim, sou assado, dizem da minha beleza, tenho vontade de família, cinco filhos, uma pinga depois do café sempre vai bem. Prometo-lhe segurança e reputação, querida prometida. Ela ansiava, algo nela ansiava... criou em si um sentimento parecido com a paixão, de fato até pode ter sido paixão - acho que esses nossos corações orgânicos cheios de insanidade, seriedade,  convições, sonhos e razão, conseguem construir qualquer coisa, qualquer sensação, basta um impulso externo, independendo do contexto e da situação. Sendo assim, talvez por ela nunca ter conhecido ou visto o amor de verdade, promessas vindas do sexo oposto bastavam para que pensasse ser amor. Fazia sentido, afinal, a herança dele era maior do que o Zé da vizinha... ela era mesmo uma menina de sorte.
     A perspectiva lhe enchia os olhos, os quais agora, em pleno séc. XXI, espiavam o Zé da pinga depois do café com uma indiferença tão terna que os tornavam opacos, opacidade e indiferença que vinham do coração por demais acostumado. A vida tornou-se docemente mecânica, se é que um dia foi diferente.

     E sssim foi, depois das cartas trocadas. Esposa desde os dezenove anos de idade de um tal José, rapaz de família rica lá do Piauí, herdou a fazenda do avô e veio. Junto dele, lá foi ela. Casou-se, sangrou, se submeteu. Pensou amar, de fato abraçou, abraçou sua condição e também aquele Zé que dormia ao seu lado, que fazia amor com ela, que lhe pedia mesa posta, atenção e roupa lavada. 
     E assim foi sendo. Requentou-lhe o café todos os dias, lavou suas roupas, beijou sua testa e fingiu, em gemidos, e nos ouvidos daquele Zé que aprendeu a gostar, a satisfação que quase nunca sentia. Assistiu muita televisão depois que puderam compar uma, começou a ter contato com aqueles filmes cinquentistas românticos que enchiam jovens corações de esperanças, ela estava conhecendo o amor, dizia. E a dor tmabém, a dor de algum vazio que começava a se abrir em seu estômago. Mas era tão interno que pouco sabia interpretar, achava que era má digestão.
     E Agora... bom, agora continua sendo. De início, esse agora, numa metadinha de um séc. XX que passava velozmente... mudanças, Jesus Amado, que que tá acontecendo com o mundo?, lhe soou um tanto mais amargo. Passou, e o mundo continuava a transbordar informação. Começou a arder ser mulher em pleno séc. XXI, seus velhos hábitos e valores ficando para trás, o que fazer com eles? Jesus, Maria, José, que trem complicado de ser, que liberdade complicada de gerir! Preferiu manter-se onde sua realidade lhe ensinara. É assim, o mundo muda, porém as individualidades são subjetivas demais para oscilarem na mesma cadência. Talvez não subjetivas, mas subjetivamente cristalizadas. E ela nem tinha, nem tem, consciência disso, fez e continua a fazer a escolha de manter-se estática tão automaticamente quanto requenta o café. Imagina só, ser mãe, senhora, avó, esposa e sobretudo mulher. Esposa dum Zé cabra macho do nordeste senhor de grandes pastos, dono duma penca de gado nelore e de uma patriarcal mentalidade de séculos atrás, quatro filhos pra cuidar... Assusta. Ausenta-lhe ar no estômago toda vez que desperta, e ela come farinha pra ver se passa. Bem sabe da dor que sente, apesar de não saber da entorpecência que ela mesma se convence; não saberia entender a hipocrisia que lhe afinge quando finge não saber que sente a ausência de qualquer coisa sem nome, saudade, saudade de alguma coisa que nunca teve, de alguma coisa que viu nos filmes, ouviu nas novelas de rádio... Algo que, de tanto fingir, faz daquilo a sua mais sincera verdade. É tão corriqueira aquela sensação, e é tão natural que coma farinha logo depois, que convenceu-se da inerência ao ser humano esse vazio. E, no fundo... aliás, na superfície e no fim das contas, isso é belo. E real. Esse jeito humano e ingênuo e distante de ser de si. É frágil e pequeno, corriqueiro, recorrente. É passar por esse mundo comendo farinha e requentando café para um alguém que pouco poderia conhecer. Não, não, ela conhece sim, conhece muito bem! Ele é dono daquelas terra tudo, gosta de café e pinga, principalmente quando o último vez depois do primeiro; gosta de sentar na ponta da mesa e de silêncio enquanto fazem amor; tem um prazer imenso ao contemplar o verde do pasto da fazenda, ou quando come de paçoca e carne seca com manteiga de garrafa. Macaxeira nem tanto, a Maria, coziheira já sabe; Não gosta quando ela se impõe não, nem quando grita, nem quando chora. O Zé sempre diz que é fraqueza chorar; ela procura não chorar perto dele, se esconde sempre no banheiro. Conhece bem o seu marido, ela pensa, e se lembra do café que tá no fogo. Tem dia que é melhor nem dirigir palavra a ele, senão o Zé fica bravo e a digestão fica difícil.
     Não admite a si mesma, não ousa se impor, requenta o café, bota a cana no copo, vê a nova mulher do vizinho ir trabalhar, faz amor em silêncio e, assim mesmo, em pleno século XXI, convenceu-se de sua felicidade.

     Ela vai pra varanda e vê o sol se pondo, como é bonito o dourado desse sol, senta na sua cadeira de fins de tarde para ler uma revista ou tricotar, pensa num filho, dois, na farinha que lhe forrou o vazio e no Zé que tá lendo o jornal satisfeito com a xícara de café dele na mão e a pinga esperando do lado.
Tá tudo em paz.

     E isso sim, meu amigo, basta a qualquer um. Convença-se de que vale(u) a pena e você será feliz. O desafio é o convencimento. E a chave á e ignorância no seu melhor e mais leve sentido. 
Basta um pôr-do-sol e um sentimento de dever cumprido.


agora vai

2 comentários:

  1. primeira vez que estou lendo o seu blog, e puts.. que texto foda.. me lembrou até algumas letras do chico buarque,adorei algumas ironias do texto em, que nos apegamos a algumas coisas e rotinas que nos conformamos com elas por não conhecer outro caminho ou, então não ter coragem de enfrentar seja lá qual o motivo..um romance do cotidiano de muita mulheres e até além.. das pessoas se analisarmos fundo... adorei.. parabéns =)

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  2. quase que me escorrem lágrimas. hahahahah
    tá demais, manu, deveras... (:

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